Culpa sempre foi um sentimento que me paralisou. Como cresci com muito medo de errar, a culpa muitas vezes me atravessava antes mesmo de eu ter o tal comportamento que geraria ela. E nos momentos que, principalmente vivendo no exterior, tive que pedir muita ajuda, a culpa vinha com tudo e mais atrapalhava do que me ajudava.
Com a prática clínica enquanto psicóloga vejo que muitos se identificam com isso. Principalmente quando precisam de apoio de alguém. E ao viver no exterior esses momentos acontecem com frequência, principalmente nos primeiros meses de adaptação. Você provavelmente vai precisar de muita ajuda. Desde o momento de descobertas, de como iniciar o processo migratório, organizar documentos, conseguir vistos, passar naquele programa de pós-graduação ou processo seletivo do emprego que você deseja, até construir e estabelecer sua vida em seu novo país.
Por isso que quando vi o anúncio do livro “Pedir, oferecer e receber ajuda” da psicóloga Fernanda Angelini (@angelini.psi) eu não pensei duas vezes. Basicamente gritei: “Shut up and take my money!”. Como eu sempre tive um relacionamento problemático com o sentimento de culpa a vida no exterior me obrigou a encarar isso de uma vez. Com esse livro, poderia ser um caminho mais fácil. E está sendo.
O livro da Fernanda tem me ajudado muito a lidar com a necessidade de ajuda e oferecer ajuda de forma mais saudável, respeitando aquilo que é importante para mim. Por isso hoje decidi conversar sobre um capítulo específico do livro que eu gostei muito e contar como isso tem me ajudado a lidar com a culpa e pedir ajuda de forma mais eficaz.
No capítulo “Desconstruindo a culpa” a Fernanda faz um apanhado geral sobre o que significa sentir culpa e quais são os contextos sociais, culturais e históricos que estão associados a esse sentimento, assim como o funcionamento e impacto da culpa em nossa psique, pela perspectiva da TCC (terapia cognitivo comportamental). Perspectiva essa da qual também nasceu as terapias contextuais, as quais trabalhamos aqui no Intercambiamente (também chamadas de terceira onda da terapia cognitivo comportamental). A partir disso, ela demonstra o quanto o sentimento de culpa pode gerar pensamentos e comportamentos disfuncionais para o bom convívio com o outro, principalmente quando precisamos de ajuda.
“No caso de pedir ajuda, é comum sentir culpa por se tornar um estorvo, por incomodar os outros ou por não ser “forte” o suficiente para se virar por conta própria.”*
“Deixar de fazer uso dos recursos à sua disposição é apenas uma das manifestações da culpa que muitas vezes nos impede de pedir ajuda.”*
No meu primeiro semestre morando nos Estados Unidos tive uma sensação intensa de fragilidade, que muitas vezes me fez construir uma perspectiva sobre mim mesma de inferioridade e inadequação a vida “adulta” em outro país. A sensação de ser um incômodo/fardo para os outros ao morar no exterior e estar pedindo ajuda com uma certa frequência teve um impacto significativo em minha autoestima. Ter dificuldades com a língua nova, com as aulas e as exigências do mestrado, com relacionamentos profissionais e pessoais, entre tantas outras situações, teve consequências para minha saúde mental. Tanto que no fim do primeiro semestre busquei ajuda no Centro de Psicologia da minha universidade e comecei a fazer parte de um grupo terapêutico para mulheres na pós graduação.
A relação disfuncional que eu tinha com esse sentimento de culpa intenso ao precisar de ajuda às vezes me fazia não pedir ajuda e meter os pés pelas mãos ainda mais. O que potencializava minha percepção negativa sobre mim mesma, sobre minha capacidade de ter uma vida autônoma enquanto adulta no exterior (ou seja, eu mesma potencializava meu sofrimento).
Como bem diz a Fernanda no livro, entendemos enquanto sociedade que pedir ajuda é um sinal de fraqueza, quando a grande verdade é que ninguém é uma ilha e pedir ajuda e dar ajuda é uma parte fundamental de nossas vidas. Principalmente se não estamos bem. Principalmente ao estar se adaptando a um novo país e cultura.
“De maneira geral, a culpa é um sentimento improdutivo que tende a piorar a situação ao invés de corrigi-la. Uma das dinâmicas mais comuns é usar a culpa como autoflagelação, um chicote psicológico que serve simultaneamente como punição por um ato transgressivo e permissão para cometê-lo novamente.”*
Sentir muita culpa muitas vezes acaba sendo tão punitivo que torna difícil o processo de conversar com quem realmente impactamos com nossos erros reais e buscar meios de reparação. Eu sou uma pessoa que sempre teve muita dificuldade de fazer isso de forma saudável — acabava me culpando muito por qualquer coisa, sofrendo muito, e me comunicando/agindo pouco em relação aos erros cometidos, principalmente aqueles que impactaram de verdade as pessoas ao meu redor. Às vezes entrava no modo “tentar adivinhar” como os outros se sentiam/o que eles queriam (obviamente na maioria das vezes errando) em uma tentativa de “nunca errar com o outro” e portanto, nunca mais “precisar sentir culpa” ou precisar reparar um erro (já adianto a vocês, isso é impossível, sempre vamos errar em algum momento, pois somos humanos).
“No momento em que me aplico, por meio da culpa, uma sentença punitiva pelos meus próprios crimes, eu me torno também absolvida, afinal já paguei pelos meus pecados. Vemos aqui novamente a falsa narrativa de que sofrer é uma forma de enobrecimento e portanto, talvez não necessidade de reparação.”*
“Reparar uma injustiça muitas vezes envolve a negociação: sentar com o outro, admitir a sua vulnerabilidade e tentar chegar a um lugar onde ambos se sintam minimamente satisfeitos com o resultado, ainda que provavelmente ninguém vai ter exatamente o que quer.”*
Assumir que erramos, que vamos precisar de ajuda ocasionalmente e comunicar de forma eficaz com o outro me ajudou nesse processo de diminuir a preocupação constante com o outro e a “tentativa de não errar” (que às vezes so me fazia errar mais, hahaha). E claro, levar esses mesmos erros e processo de reparação com mais leveza e menos autojulgamento. Isso também nos ajuda a perceber o erro do outro e seu processo de reparação com menos julgamento, portanto, gerando menos sofrimento.
Okay…beleza, muito fácil falar. Quero ver conseguir fazer! Pois bem…em praticamente todos os capítulos a Fernanda não só reflete sobre os temas, mas também traz orientações da para enfrentar os desafios de pedir, receber e oferecer ajuda. No capítulo sobre culpa por pedir ajuda ela fala sobre o truque de imaginar que você é uma pessoa querida precisando de apoio:
“Imagine que uma pessoa muito querida estivesse na mesma posição que você. Você pensaria menos dela se ela pedisse ajuda? Você consideraria ela um estorvo? Você esperaria que ela fosse capaz de lidar com tudo sozinha? Ou que se ela está pedindo ajuda para consertar um erro, é porque ela merece sofrer como punição? Não é razoável esperar de você o que você não espera de mais ninguém. E se você não faria isso com uma pessoa querida, que tal começar a pensar em você mesmo como uma pessoa querida?”*
Ela também sugere se questionar ao se ver envolta por essa sensação intensa de culpa, seja ao pedir ajuda, seja quando cometemos um erro, antes de agir. Algumas das perguntas são:
“Eu estou tentando melhorar a situação ou só encontrar um culpado para punir?”*
“Existe mesmo uma relação de causa e consequência entre o que aconteceu? Você realmente cometeu um erro que justifique sentir culpa?”*
“Se sim, há algo que você pode fazer para reparar a situação, ainda que simbolicamente?”*
Ah, o livro tem muito mais…mas é melhor você comprar e ver por conta própria o quanto ele pode te ajudar. E claro, lembrar do que sempre dizemos por aqui: nossas orientações nem o livro da Fernanda são regras para você se exigir ainda mais. Apenas sugestões para você tentar modificar sua relação com a culpa e a necessidade de pedir ajuda ao viver no exterior. Treine, pratique, sem buscar a perfeição, mas sim se aproximar de uma vida que condiz com aquilo que é importante para você.
Abraços da psi Mirela Cardinal
*Fernanda Angelini. Pedir, oferecer e receber ajuda. Edição do Kindle.
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